Essa epígrafe é de outro testemunho que ouvi,
mas serve muito bem para o que doravante passo a narrastes, ó caro leitor.
Carlos não era o melhor cidadão da vila, aliás
nem de longe o era, por ser promotor de festas dançantes, regadas a cachaça e
muita cerveja o que geralmente resultavam em brigas e vez por outra em
homicídios, fatos estes que faziam com que Carlos não fosse visto com bons
olhos pelos “bons” moradores da vila. Além disso, ele tinha um ponto fraco;
orgulhava-se de ser um “bom pinguço”, título dado pelo próprio. Seu entusiasmo
após alguns goles era quase sempre adaptado ao momento e as circunstâncias como
forma de enganar e brigar, diziam até que já tirou a vida de alguns. Além de
ser um parlapatão.
O cartaz anunciava que no dia 12 do mês corrente
a aparelhagem que tinha o nome de uma pedra preciosa, estaria na vila em
ocasião da festividade de um santo da igreja católica, como de praxe, o profano
justificado pelo religioso. Irmã Augusta, morava perto do terreno vazio onde
realizavam-se as festas e estava profundamente amargurada, pois sabia por
experiência anterior que não dormiria durante os três dias em que aquela
aparelhagem estivesse na vila e também temia o furto de seus “xerimbabos”, pois geralmente nesse
período, os meliantes da cidade migravam para o interior com o intuito para
roubar os desapercebidos moradores.
No ano anterior, o irmão André teve sua moto
roubada, ele chegou do culto de domingo, que terminara mais cedo por que o
Carlos começava a festa antes do horário combinado, e estacionou a moto no
quintal de sua casa sem trancar a direção. Quando André lembrou-se de que não
trancara a direção de sua moto, abriu a porta e viu que havia sido roubada, chamou
seu pai que como bom caçador saiu a perseguir o rasto do pneu da moto e as
pegadas do larápio, o alcançando cerca de dois quilômetros da vila. O ladrão
havia empurrado até ali e exausto sentara para descansar. Depois de um embate
perigoso com o meliante, irmão André recuperou sua moto. Soubemos disso por que
ele testemunhou na igreja.
Carlos aguardava ansioso o dia 12, onde
extravasaria toda animalidade. Não sabendo ele que veria o dia nascer, mas não
o seu fim. Decidiu então ir capturar caranguejos no mangue, mas havia qualquer
coisa no tom daquela tarde que o perturbava, um som se apoderava de seu cérebro, o
hino que acabara de ouvir quando passava em frente da Casa de Oração da
Assembleia de Deus, ecoava em sua mente e a mesma frase se repetia como disco
furado: “Amanhã pode ser muito tarde. Hoje Cristo te quer libertar”. Ao
perceber se cantarolando, subitamente faz o sinal da cruz, se benzendo e teve
medo com a pressão contínua da melodia em seu subconsciente. Ao chegar ao cais reparou que, no fundo da
canoa onde ia entrar, se encontrava um folheto evangélico com o texto embasado
em Jo 3:16. Hesitou um pouco, mas,
avançou maré abaixo em busca de um ponto certo para a captura do crustáceo.
Depois de afortunada mariscagem já voltando para sua canoa, resolveu recolher
mais um caranguejo, que por sua experiência só poderia ser um dos grandes
devido o tamanho de sua “casa”. Ao introduzir todo seu braço no buraco até seu
rosto encostar-se ao tijuco, não encontra nada, mas sente que algo lhe apertou
a mão com veemência e sente-se preso pelo o infortuno.
O sol já se estava se pondo no horizonte e a
noite escura entenebrecia o quadro de desespero, nem mitigada pela
fosforescência das águas o horror noturno se amenizava. Carlos apegou-se a
todos os “santos” que conhecia, rezou por horas a fio e a maré lentamente o
envolvia como uma serpente constritora. Um terror supersticioso começou a
invadir os seus pensamentos e o próprio espirito de Carlos estava mergulhado em
profundo desespero.
Cada instante ameaçava ser o último da vida de
Carlos, as ondas da maré alta o encobriam intermitentemente e ele já se
imaginava sepultado pelas águas. Dá-se por vencido após duas horas de tentativa
e desistiu de se desvencilhar do aperto mortal de mão, exausto ouve novamente o
hino 570, da harpa cristã em seu subconsciente, ao ouvir as palavras “Hoje
Cristo te quer libertar”, um sentimento atravessou-lhe a alma e uma ideia lhe
acudiu o espírito sobre a quem orar nesse momento. Em profundo desespero
grita:
- Deus! Se tu me salvares, eu entrarei na “lei
dos crentes”.
Com apenas o rosto fora d’água, percebeu que a
maré parou o seu avanço, por um instante deteve-se na contemplação do horror. Ele
esperou as águas recuarem e a terra soltar a sua mão, a maré levou todos os
caranguejos capturados mas ele não se importou, estava satisfeito por poder
voltar com vida. Recompôs-se do desespero aterrador da contemplação da própria
morte, que pensara ser inadiável diante das ondas que cada vez se tornava
lúgubre e assim retornou para casa.
Ao chegar à vila, percebeu que ninguém notara
sua ausência, todos estavam imersos em suas atividades e meditações, passavam
por ele sem darem pela sua presença. Um
pensamento o força a convergir a uma ideia fixa, murmurava de si para si:
- “Beberei a noite toda e só amanhã aceitarei
a Jesus!”
Ignorando
todo o episódio passado, mostrando que de nada serviu, apeou seu cavalo e foi
para o bar beber, a pompa de dono de botequim e o aparato de promotor de festa
da vila confundia e inebriava seu espírito. Abandonou o voto recente pelas
futilidades e a radiosa beleza das mulheres fugazes, embriagou-se, brigou,
fugiu. Ao raiar do dia, retornou para casa em sua cavalgadura.
Ah! Se todo o ar de intuição te conduzisse a
dedução dos fatos subsequentes, meu preclaro e assíduo leitor, já terias o
resultado - Como bem sabes álcool e direção não combinam. No percurso de
retorno que Carlos fizera, um grito alto e contínuo completamente anormal e
inumano ecoa de dentro da mata, assustando o cavalo que se empina derrubando-o
de cabeça no chão, fatalmente seu pescoço quebrou vindo a óbito
instantaneamente...
Esse
incidente fornece-nos uma reflexão: “Será tudo isso obra de um desordenado
acaso?”
"Não useis então da liberdade para dar
ocasião à carne." (Gálatas 5: 13)
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